Três anos seguidos de chuvas abaixo da média na área das hidrelétricas do Brasil têm colocado em xeque a posição de absoluto predomínio dessas usinas na produção de eletricidade do país e pressionado as tarifas, que deverão subir neste ano para custear o acionamento de termelétricas, mais caras.

Especialistas ouvidos pela Reuters avaliam que mudanças no regime hidrológico, principalmente do Nordeste, e um elevado nível de esvaziamento dos reservatórios nos últimos anos têm dificultado a recuperação dos lagos e reduzido a geração hídrica de forma quase estrutural, o que pode limitar a capacidade do sistema elétrico de suportar uma eventual retomada da economia em 2018.

Dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) apontam que as hidrelétricas devem gerar em 2017 apenas 83,3 por cento de suas garantias físicas, cerca de 4 pontos percentuais abaixo do ano passado –o ideal é que as usinas sejam capazes de gerar perto de 100 por cento mesmo em anos críticos.

A geração hídrica, que representa cerca de 60 por cento da capacidade elétrica do país, tem apresentado déficit desde 2014, com a produção tendo alcançado 87 por cento das garantias em 2016. “Até termos um período de chuvas dentro da média, pensar em déficit (hídrico) recorrente acho que vai ser a realidade. A cada ano que passa a gente está sempre dependendo do que vai ser a chuva”, disse o sócio da comercializadora de energia Compass, Marcelo Parodi.

Diante desse cenário, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) já abriu uma audiência pública para avaliar a inclusão de ao menos 2,5 bilhões de reais nas tarifas em 2017 para custear o acionamento de térmicas. O diretor da consultoria TR Soluções, Paulo Steele, estimou à Reuters que o impacto médio nas tarifas deverá ser de 3,8 por cento.

Mas o peso para os consumidores poderá ser ainda maior se as precipitações continuarem fracas, uma vez que seria necessário ligar termelétricas ainda mais caras, movidas a óleo, o que acionaria a bandeira vermelha nas contas de luz, gerando cobrança adicional de 3 reais para cada 100 kilowatts-hora consumidos.

DÉFICIT GERA DISPUTA

O déficit de geração das hidrelétricas tem sido alvo de uma forte disputa no mercado de energia, com diversas empresas tendo obtido proteção judicial contra perdas financeiras devido à menor produção. O embate faz com que todos os meses cerca de 1,6 bilhão de reais fiquem em aberto nas liquidações financeiras da CCEE, que promovem pagamentos e recebimentos entre as empresas de eletricidade.

Atualmente, a CCEE e a Aneel tentam costurar um acordo para que as elétricas desistam das liminares e paguem as dívidas de maneira parcelada, mas para analistas a continuidade do cenário hídrico ruim vai dificultar uma solução para o tema, chamado tecnicamente de GSF.

“É muito mais difícil. Você acaba dando, digamos, coerência para quem está com liminar de pé, porque isso (déficit ainda elevado) mostra que o sistema de fato se desequilibrou”, disse o sócio da consultoria Esfera Energia, Braz Justi.

Embora essa disputa em torno do GSF na CCEE não gere impactos diretos na tarifa, a situação cria incerteza para as elétricas –parte delas não recebe todos os recursos a que tem direito por suas operações no mercado de energia, enquanto outras têm provisionado valores envolvidos na guerra judicial.

IRREALISMO

Segundo especialistas, a dificuldade das hidrelétricas em recuperar os reservatórios e gerar suas garantias físicas decorre de mudanças no clima e no sistema elétrico ao longo das décadas. Enquanto o consumo de eletricidade cresceu cerca de 4 por cento ao ano entre 2004 e 2014, as novas hidrelétricas construídas no Brasil não contam com reservatórios, devido a restrições ambientais, o que reduziu a capacidade do sistema de aguentar períodos de chuvas ruins.

O diretor do instituto Ilumina, Roberto Pereira D’Araújo, acredita que o país superestimou a capacidade das hidrelétricas e exigiu demais das usinas nos últimos anos de chuvas boas, o que não garantiu uma reserva para o atual prolongado período de seca.

“De 2008 a 2012 as hidrelétricas geraram muito acima da garantia física, o contrário do atual déficit… nosso sistema tem memória, se você fez algo errado no passado, paga agora”, disse.

A diretora da consultoria Engenho, Leontina Pinto, afirma que parte do otimismo quanto à oferta hidrelétrica se deu porque o clima mudou no Nordeste, que ficou mais seco nos últimos 20 anos, e não se esperava que os reservatórios fossem esvaziar tão rapidamente. E, quanto menos água nos lagos, menor produção.

“Os reservatórios levavam anos para ficar vazios… Hoje em seis meses vou de cheio a vazio se a vazão for baixa.” O cenário, para Leontina, pode gerar riscos se a economia brasileira tiver uma recuperação efetiva entre o final deste ano e 2018. “No nível que os reservatórios estão, até o ano que vem eles não enchem, a menos que a gente tenha um dilúvio… se a economia recuperar, talvez a gente não consiga dar conta… pessoalmente estou bem preocupada.”

Os especialistas acreditam que o cenário de estresse hídrico pode ser minimizado com uma maior participação estrutural das demais fontes de energia na matriz brasileira, como as termelétricas e as usinas eólicas e solares. Mas atualmente as térmicas são contratadas apenas como apoio à geração hidrelétrica, enquanto as renováveis ainda iniciam sua expansão no país. (Reuters)